História é de grande importância para a identidade regional e foi o primeiro caso de criação de uma reserva para índios em conflito com a população branca no Brasil.
A quinta-feira, dia 22, é marcada pelos 108 anos do primeiro contato pacífico entre índios e o homem branco em Ibirama. A data é marcada como o Dia da Pacificação e o Jornal Vale do Norte faz um resgate da história do pacificador Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, nome importante e até hoje lembrado na região e uma das figuras que protagonizou um feito que entrou para a história do País, promovendo a pacificação entre os Xokleng. O objetivo da reportagem é lembrar do passado e valorizar a história, em época de revisionismo e negação dos personagens históricos, com a retirada de nomes e a derrubada de monumentos, além de valorizar a rica cultura dos povos que habitavam o Alto Vale.
Vindo para a região de Ibirama em meio aos muitos conflitos entre índios e colonizadores, muitos deles sangrentos, Eduardo Hoerhann, que era bisneto de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias (herói da Guerra do Paraguai), em 1914 como funcionário do SPI, conseguiu, contatar os Xokleng às margens do córrego Plate e Rio Hercílio no dia 22 de setembro, sendo que a data do primeiro contato é lembrada como o Dia da Pacificação. Na ocasião, ele acenou para um índio na outra margem e pronunciou algumas palavras do vocabulário xokleng que havia aprendido, que provocou risadas nos índios.
O bisneto do pacificador, o historiador Rafael Hoerhann conta que a pacificação ocorrida em 22 de setembro de 1914, ao seu ver como historiador, precisa ser entendida como um ato de paz. Ele conta que ao contrário de como afirmam outros estudiosos da temática, a palavra e nem mesmo este processo, devem ser entendidos como sinônimo de ‘domesticação’ ou ‘amansamento’.
“A pacificação trouxe a cessão das mortes de indígenas e colonos através dos combates que travavam antes de 1914. Os primeiros tiveram seus territórios tradicionais ocupados pelos colonos estrangeiros, e estes, incentivados pelo governo brasileiro, iniciaram a colonização das terras. Era evidente que embates aconteceriam, ao considerar que a disputa pela sobrevivência era inerente a ambos os lados. Quando atacados, os colonos contratavam os bugreiros, grupos especializados em matar indígenas, composto de experientes mateiros, cujos integrantes eram caboclos, brancos, negros e até mesmo indígenas de comunidades historicamente inimigas”, relatou ao Jornal Vale do Norte.
Serviço de Proteção aos Índios
O historiador relata que com a criação da Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, a ideia foi contatar povos nativos para integra-los, em regiões consideradas complicadas no quesito de ocupação e exploração das terras, e o Alto Vale do Itajaí era uma destas regiões. Foi neste contexto que em 1913 surge Eduardo Hoerhann que conseguiu junto de sua equipe no ano posterior, contatar o povo Xokleng que naquela época eram denominados Botocudos.
Hoerhann liderou a equipe responsável e vale a pena destacar que ele contava com a idade de 18 anos. “Em um livro, escrito pelo memorialista Plínio Moser há a citação que Eduardo ameaça Martinho Bugreiro, o líder dos algozes assassinos, com os dizeres: ‘Se eu souber que você matou mais um índio, eu vou te buscar até no inferno. Estás bem avisado’. E de fato, as perseguições cessaram em um curto espaço de tempo. Então, eu entendo que a pacificação, agora, conseguiu salvar centenas de indivíduos”, avalia o historiador sobre o feito do bisavô.
Martinho Bugreiro comandou diversas expedições na região, matando indígenas recebendo o pagamento por orelha cortada. Ele era pago pelo extermínio, por conta do conflito entre colonos nos territórios “tradicionais” Xokleng. O clima de insegurança dos mesmos frente a estes ataques ameaçava todo o processo de colonização.
Criação da primeira reserva indígena do Brasil
Após ganhar a confiança dos nativos, Hoerhann acabou convencendo os três grandes líderes indígenas da época de que a única maneira de sobreviver era na terra demarcada. Foi necessária a migração para uma área demarcada que em 1921 foi batizada de Posto Indígena Duque de Caxias. “Lembremos que nem todos os indígenas contatados em 1914 aceitaram esta condição redutível: muitos retornaram às matas e em poucas décadas desapareceram. Eduardo precisou, na época, convencer três líderes indígenas, inclusive de grupos rivais, que a permanência no posto, seria adequada (ou menos pior) para a sobrevivência de toda a comunidade”, diz.
Este processo de integração do indígena à sociedade regional teve seu lado positivo, segundo o historiador. Ele considera três pontos importantes: primeiro o incremento do peixe na dieta dos Xokleng em 1916, visto que eles preferiam passar fome, se alimentar de insetos ou pequenos vertebrados, do que comer peixe. “Este povo o considerava venenoso e não se sabe o motivo desta interpretação. Mas logo, conforme os relatórios de Eduardo, pegaram o gosto pela atividade da pesca”.
Em segundo lugar, a própria demarcação da terra, que passou a ser uma reserva legalizada e foi a primeira do Brasil. Santa Catarina deu exemplo para que outros estados fazerem o mesmo. Em terceiro, a criação de uma escola dentro da reserva indígena que atendia as crianças Xokleng e outras crianças não-indígenas da região.
Com a pacificação, os índios, que viviam da caça, foram confinados na reserva Duque de Caxias, que ocupa parte dos municípios de José Boiteux, Vitor Meireles, Itaiópolis, Doutor Pedrinho e Rio Negrinho. Apesar dos reflexos positivos do feito serem sentidos até hoje pelos povos indígenas, a reserva passou a viver um novo conflito com a construção da Barragem Norte.
“Se não se redessem, seriam todos mortos pelo Estado”
Para Basilio Pripá, que é uma das lideranças da comunidade indígena em José Boiteux, a pacificação trouxe uma espécie de alivio para o povo. Os anos anteriores foram marcados pela guerra entre os Xokleng e os bugreiros, assassinos mercenários contratados pelo governo. “Se não se redessem, seriam todos mortos pelo Estado brasileiro”, conta.
Em 22 de setembro de 1914, os líderes Kovi Pathé e Vomblé Kuzu partiram de um acampamento do povo (que não se fixava em aldeias), no final da madrugada, para o encontro definitivo com os enviados pelo SPI. Pripá conta que teve a oportunidade de conhecer o Kovi ainda na infância. “Acredito que foi uma decisão muito inteligente destas lideranças para que a comunidade sobrevivesse”, disse.
Ele conta que a data de 4 de agosto de 1904 é lembrada com muita tristeza pelos indígenas, onde mais de 200 pessoas, entre mulheres e crianças, foram mortas por bugreiros. “Houve até uma comemoração no dia em uma cidade aqui do Alto Vale, como sendo um grande feito. Isso hoje é uma vergonha para o Brasil. Depois de 108 anos, estamos em 500 famílias, em torno de 1500 pessoas vivendo tranquilamente”, disse o indígena.
A reserva abriga as aldeias de Bugio, Barragem, Sede, Pavão, Palmeira, Figueira, Coqueiro e Toldo.
Katanghara
No Cemitério Municipal em Ibirama, uma lápide em forma de ponta de flecha e a inscrição “Aqui Jaz Katanghara”. Ela marca o lugar do sepulcro de Eduardo de Lima, falecido em 1976. O nome Katanghara junto ao epitáfio, foi dado pelos índios. Katanghara é a madeira cabiúna (Dalbergia nigra) utilizada para a confecção dos arcos do povo Xokleng. Os índios lhe deram esta alcunha devido ao seu porte atlético na juventude e sua personalidade rígida.
Arrependimento
Na década de 30 Eduardo começou a ter contato com cientistas estrangeiros. O antropólogo norte-americano Jules Henry que viveu quase dois anos com os Xokleng sob a custódia de Eduardo e, Kurt Nimuendajú, etnólogo alemão com quem trocou muitas cartas e discutiu inúmeras ideias. “Mas posso dizer que este contato com cientistas experientes modificou seu olhar em relação ao seu trabalho perante os indígenas. Em 1953 em depoimento ao antropólogo Darcy Ribeiro ele disse que tinha um arrependimento forte por ter tirado este povo da mata, ao considerar que as promessas de real proteção estatal nunca aconteceram de fato. O SPI sempre foi negligenciado por todos nossos chefes de estado de 1910 até sua extinção em 1967, quando foi substituído pela FUNAI”.
Na última entrevista em vida de Eduardo de Lima, concedida ao Jornal O Estado em 20 de julho de 1973, o pacificador, depois de acusações que lhe fizeram – e que foi inocentado, se diz arrependido. Depois de deixar uma família de classe média do Rio do Janeiro para se dedicar por 42 anos aos índios no Sul do Brasil, ele passou por dificuldades no fim da vida, chegando a perder a aposentadoria. “Diante do horror com que essa experiência com os botocudos me armou, eu não voltaria a assumir a mesma tarefa que assumi no começo do século. Pacificar o índio, civilizar o índio é o crime dos crimes! Fui até amaldiçoado pela minha mãe por seguir minha missão”, disse na época. Botocudos eram como os Laklãnõ-Xokleng eram chamados no passado.
Por Marcelo Zemke – Jornal Vale do Norte