Vitor Meireles, que é município mais impactado com a área em disputa com a comunidade indígena
Marcelo Zemke
Apreensão. Este é sentimento das mais de 800 famílias que tiram o sustento da agricultura familiar em Vitor Meireles, que é município mais impactado com a área em disputa com a comunidade indígena. O agricultor Francisco Jeremias, o Chico, é um destes agricultores que, recebeu a reportagem na sua propriedade na Serra da Abelha. “Estamos apreensivos. Já imaginou um agricultor, com posse de mais de 100 anos, e chegarem e dizer que não são mais donos? Queremos que o marco temporal permaneça. Não se pode mexer na constituição. Todos têm documentos registrados em cartório com o brasão do Estado de SC. Estamos lutando para que o agricultor permaneça na terra”, disse Chico.
Um dos pontos defendidos é a ampliação da reserva na direção oposta, onde há grandes áreas desabitadas com mata nativa e predisposição dos proprietários em vender para a União, além de acesso mais fácil às rodovias pavimentadas. Culturalmente, os índios ajudariam na preservação destas áreas.
Chico conta que a proposta de ampliação da terra indígena nas terras desabitadas foi feita e aceita pelos proprietários dos lotes, mas não foi aceita pelos indígenas. Um dos idealizadores da proposta havia sido o empresário Genésio Ayres Marchetti, que procurava manter bom relacionamento com a comunidade indígena. A possível troca propunha que cinco propriedades de empresas fossem indenizadas pela União e anexadas à terra indígena. “Havia uma proposta que levamos para pacificar e deixar estas famílias de agricultores onde estão e o governo pagar estes empresários. Até hoje vivemos em harmonia com os índios e queremos continuar assim. Queremos que eles tenham o direito de trabalhar e vender o seu produto”, explica.
Ao mostrar as escrituras, ele conta que a área indígena está demarcada desde 1926 e algumas famílias com escrituras desde 1902. O tema do conflito é ampliação da terra indígena, que é formada por sete aldeias, que juntas somam 14 mil hectares e os índios querem que a área seja ampliada para 37 mil hectares. Em outro, estão as famílias de agricultores dos municípios de Vitor Meireles, José Boiteux, Itaiópolis e Doutor Pedrinho. Estes, estão apreensivos em ter que deixar suas terras, casas e animais, além de impactar diretamente na economia destes municípios. “Se a terra indígena for ampliada, o município irá perder 76% do território”, disse.
Francisco é um dos agricultores que nasceu na pequena propriedade herdada de seu pai. Nela hoje vivem sua esposa, filhos e netos. A maior produção é de leite, mas a família também cria suínos e aves, além de cultivar milho. “Estamos levando alimentos à mesa das pessoas. Queremos continuar produzindo”.
Ela aponta uma estrada, que faz divisão entre a área pretendida pelos povos indígenas. “Até hoje não entendemos o porquê esta área ser indígena e a outra não. Qual critério? São cerca de 2,5 mil ou 3 mil pessoas que poderão perder suas casas e suas terras. Sem agricultura e sem agricultor, não há humanidade”, diz Tarcísio.
Impasse gera insegurança para novos investimentos
Para o produtor de uvas Jairo Böing, a impasse com o marco temporal dificulta novos investimentos na propriedade de 10,9 hectares. Ele, que também herdou as terras que foram divididas com o irmão, conta que produz cerca de 5 toneladas de uvas por ano, abastecendo 60 mercados de Santa Catarina e Paraná. “Hoje sou a quarta geração aqui. Meu bisavô veio fugindo da guerra. Se não for aprovado, todo este esforço feito em busca de uma nova vida, fica por aqui. Acredito que este é um tema delicado e somos vítimas de um diálogo que não cabe a nós e não podemos dizer o que é certo ou errado. Estamos à procura de uma melhor solução”, disse.
Böing destaca que a manutenção do marco temporal é a alternativa mais justa. “Temos família e temos a propriedade, e nada mais justo que manter. Lembrando que todas estas terras foram adquiridas. Não foram invadidas e tem o suor de muita gente que já passou por aqui e espero que nossa família continue por muito mais tempo”, destaca.
Ele previa investimentos em um restaurante para receber turistas, que participam da colheita, mas está inseguro em investir. A obra está parada e também não busca novos financiamentos no banco. “No primeiro trimestre do ano, servimos mil almoços para cerca de 3 mil pessoas que passaram por aqui”, conta.
Outro produtor ouvido pela reportagem é Vilmar Heidmann, que em sua propriedade, também na Serra da Abelha, produz mais de 1,2mil litros de leite por dia pela pecuária sustentável, com o uso de pastagem perene, além de produção de milho para a silagem.
Assim como os demais agricultores que argumentam que compraram as terras de boa-fé e que a maioria dos títulos de propriedade remontam aos anos de 1890 e 1910, a propriedade da família Heidmann foi comprada pelo avô, obedecendo todos os tramites legais, com escrituras. “A propriedade era de meu avô, que comprou na década de 60, escriturada. Se isso não valer nada, vai haver insegurança”, disse.
Ele conta que sempre morou na propriedade, desde que nasceu. “Se tiver que sair daqui, onde vou colocar meus animais? Seria uma injustiça, pois temos vínculos aqui, desde o nascimento e temos parentes sepultados no cemitério da comunidade ”, diz Heidmann.
A tese do marco temporal chegou ao STF por meio de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem indígenas das etnias Guarani e Kaingang.
O debate do processo de demarcação (PDC) 480/08 começou há 14 anos e a decisão deverá impactar diretamente nos municípios. A tese do Marco Temporal afirma que só pertenceriam aos índios as terras em que eles estavam no dia 5 de outubro de 1988, data de aprovação da Constituição Federal. Já os indígenas reivindicam terras que eles supostamente ocupavam anteriormente a essa data.
Marco temporal está sem data para retornar
Na tarde de quarta-feira (7), o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do caso de repercussão geral sobre direitos originários. Paralisado desde setembro de 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas.
Após o voto do ministro Alexandre de Moraes, que se posicionou contra a tese do marco temporal e apresentou novos elementos para análise, o ministro André Mendonça pediu vista do processo, interrompendo novamente o julgamento.
A presidente da Suprema Corte, a ministra Rosa Weber, informou que o prazo oficial para a devolução do voto-vista é de até 90 dias. Portanto, o julgamento de repercussão geral no STF está novamente interrompido e sem data para retornar. Mendonça assegurou que antes do prazo estabelecido pelo regimento da Corte, apresentará seu voto.
A ação movida pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina se baseia na tese do marco temporal para alegar que os indígenas não têm direito à área em disputa porque não estavam ali em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, cujo Artigo 231 garante a esses povos o direito sobre suas áreas tradicionais. Se prevalecer esse argumento, o marco temporal servirá para todas as demarcações de terra indígena no Brasil (como, aliás, prevê o Projeto de Lei 490/2007, recém-aprovado pela Câmara dos Deputados). Agora o PL está para votação no Senado, onde não há prazo claro para o debate.
A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX.
Em Vitor Meireles, a ampliação da reserva indígena envolve as comunidades de Santa Cruz dos Pinhais, Campo Lençol, Serra da Abelha I e II, Rio Denecke I e II, Tifa da Paca, Ribeirão das Frutas, Barra da Prata, Pratinha, Rio Bruno, Alto Rio Bruno. Em Itainópolis estão Rio Toldo e Bom Sucesso, e em Doutor Pedrinho está em disputa a localidade de Alto Forcação. Já em José Boiteux, a ampliação engloba parte da Serrinha, Barra do Dollmann e Palmeirinha.